Mahā-Viṣṇu expira Big Bangs e inspira Big Crunchs: entre a ciência moderna e a teologia gaudiya vaishnava

Desde os tempos mais antigos, a humanidade se maravilha diante do mistério do cosmos. Nossos ancestrais levantavam os olhos para o céu estrelado e perguntavam: “De onde viemos? Para onde vamos? Qual é a origem de tudo?” A ciência moderna, com suas ferramentas matemáticas, telescópios poderosos e experimentos sofisticados, tenta responder a essas perguntas descrevendo o universo em termos físicos. Já as tradições espirituais, como a gaudiya vaishnava, buscam compreender não apenas a origem material, mas também o sentido último da existência. À primeira vista, essas duas abordagens parecem pertencer a mundos separados. No entanto, quando olhamos mais fundo, percebemos que elas podem dialogar, se complementar e até iluminar uma à outra.

Segundo a cosmologia moderna, o universo teve início há aproximadamente 13,8 bilhões de anos, no chamado Big Bang. Esse evento não foi propriamente uma explosão no espaço, mas a expansão do próprio espaço-tempo a partir de uma condição inicial extremamente densa e quente. A física descreve como, a partir desse estado primordial, surgiram as partículas fundamentais, os átomos, as estrelas, as galáxias e, eventualmente, a vida na Terra. A cosmologia védica, por sua vez, descreve algo profundamente poético e simbólico: Kāraṇodakaśāyī Mahā-Viṣṇu, expansão plenária de Śrī Kṛṣṇa, a Suprema Personalidade da Divindade (Bhagavān), deitado sobre o oceano causal, respira, e de cada expiração surgem universos incontáveis. Quando ele inspira, esses universos retornam para dentro de si. Em cada universo, o Senhor Supremo se manifesta como Garbhodakaśāyī Viṣṇu, deitado sobre a serpente divina no oceano cósmico. De seu umbigo, brota uma flor de lótus, de onde emerge Brahmā para dar forma ao universo material. Deus também se expande como Kṣīrodakaśāyī Viṣṇu, a Superalma do universo (Paramātmān), estando localizado em cada ser vivo, acompanhando sua alma individual (ātman), e em cada átomo. Essa descrição pode ser interpretada como uma metáfora para ciclos cósmicos de criação e destruição, que curiosamente encontram eco em teorias científicas modernas sobre universos oscilantes ou multiversos eternos. 

A hipótese do multiverso, hoje debatida por físicos e cosmólogos, sugere que o nosso universo pode ser apenas um entre infinitos outros, cada qual com suas próprias leis físicas. Isso soa estranhamente próximo da visão vaishnava, que fala em incontáveis universos flutuando no oceano causal, cada um com sua própria história, deuses (devas), planetas e seres vivos. Para a ciência, a existência desses universos paralelos é uma possibilidade matemática ainda não comprovada. Para a tradição vaishnava, é uma realidade eterna sustentada pela respiração divina. A diferença está na interpretação: enquanto a ciência fala em probabilidade e leis naturais, a teologia fala em propósito e consciência transcendental.

A teoria das cordas, por sua vez, busca unificar todas as forças fundamentais da natureza. Ela propõe que as partículas não são pontos indivisíveis, mas minúsculas cordas vibrantes em dimensões além das três que conhecemos. Segundo algumas versões, seriam necessárias 10 ou 11 dimensões para que o universo faça sentido matemático. A cosmologia védica também fala em múltiplas dimensões, chamadas lokas, que vão desde reinos superiores de prazer e conhecimento até regiões inferiores de sofrimento. Para o cientista, essas dimensões são entidades geométricas ainda hipotéticas; para o devoto vaishnava, são níveis reais de existência acessíveis de acordo com a consciência da alma. Curiosamente, em ambos os casos, a realidade que percebemos com nossos sentidos não esgota a totalidade daquilo que existe.

Outro ponto de diálogo é a questão da vida e da evolução. A biologia moderna explica a diversidade das espécies através da teoria da evolução por seleção natural. A tradição védica fala em 8,4 milhões de formas de vida pelas quais a alma pode transmigrar. Vista de forma conciliadora, a doutrina védica não precisa negar a evolução; ao contrário, ela pode interpretá-la como o processo natural pelo qual a matéria organiza corpos cada vez mais complexos, servindo de veículos para a consciência se manifestar. O que a ciência descreve como evolução biológica pode ser visto, sob o olhar vaishnava, como parte de um projeto maior de aperfeiçoamento espiritual.

Mas talvez o ponto mais profundo de encontro e também de divergência seja a questão da consciência. Para a ciência, ainda não há resposta definitiva sobre a origem da experiência subjetiva. Como algo físico, como o cérebro, pode gerar algo não físico, como pensamentos, emoções e percepções? Esse é o chamado “hard problem” da consciência. Para a teologia vaishnava, a resposta é clara: a consciência não é produto da matéria, mas sua base. A alma (ātman) é eterna, indivisível e consciente por natureza. O corpo e a mente são apenas instrumentos, enquanto a centelha espiritual é a verdadeira identidade do ser. Esse ponto ecoa debates modernos em filosofia da mente e até em física teórica, quando alguns pesquisadores sugerem que a consciência pode ser um aspecto fundamental do universo, e não apenas um epifenômeno da atividade cerebral.

Assim, ciência e espiritualidade não precisam se contradizer. Elas falam linguagens diferentes, focam em aspectos distintos da realidade e usam métodos diversos, mas podem dialogar. A ciência descreve o “como”: como o universo evolui, como a vida se desenvolve, como as leis da natureza operam. A espiritualidade responde ao “porquê”: por que o universo existe, qual é o sentido da vida, para onde a consciência se dirige após a morte. Juntas, elas oferecem uma visão mais completa: um universo que é ao mesmo tempo matematicamente estruturado e espiritualmente significativo.

Para os gaudiya vaishnavas, o ponto culminante desse entendimento é reconhecer que, acima de toda a complexidade cósmica, está a realidade última: Śrī Kṛṣṇa em Goloka Vṛndāvana, acompanhado de Śrī Rādhā e seus associados eternos. Essa descrição não precisa ser vista como concorrente do Big Bang, da teoria das cordas ou da biologia evolutiva. Ela pode ser entendida como uma dimensão superior, que dá sentido e propósito ao processo material. Assim como um mapa pode ter várias camadas — geográfica, política, climática — o universo pode ser compreendido em múltiplos níveis: físico, biológico, consciente e espiritual.

Conciliar ciência e espiritualidade não significa misturar tudo indiscriminadamente, mas reconhecer que cada perspectiva ilumina aspectos diferentes do mesmo mistério. A ciência nos mostra a grandiosidade das galáxias, a beleza das equações e a elegância das leis naturais. A teologia vaishnava nos lembra que, por trás de tudo, existe um amor divino infinito, que sustenta cada partícula e cada universo. Quando unimos essas duas visões, descobrimos que o cosmos não é apenas um acidente cósmico sem sentido, nem apenas um teatro ilusório, mas um cenário onde a consciência eterna pode despertar para sua origem, sua meta e sua bem-aventurança suprema.


Alexandre Dettmann Kurth está cursando Licenciatura em Matemática (97,86% concluída) pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (Ifes); é professor de Matemática e Física pela Secretaria de Estado da Educação do Espírito Santo (Sedu/ES); cristão de tendência católica apostólica evangélica, membro leigo da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB), buscando o diálogo ecumênico com as outras denominações cristãs e o diálogo inter-religioso com as outras religiões, principalmente o hinduísmo, o budismo, o taoísmo e as de matrizes africanas.

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